segunda-feira, 1 de abril de 2019

CARTA PÚBLICA DE REPÚDIO À “COMEMORAÇÃO” DO GOLPE DE 1964

CARTA PÚBLICA DE REPÚDIO À “COMEMORAÇÃO” DO GOLPE DE 1964,
RECOMENDADA PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA ÀS FORÇAS ARMADAS

DITADURA NÃO SE COMEMORA!

As entidades, movimentos, coletivos e demais representações da sociedade civil abaixo assinadas vêm a público repudiar a recomendação do presidente da República para que as Forças Armadas “comemorem” o golpe perpetrado no dia 1º de abril de 1964, falsamente caracterizado pelos que assaltaram o poder através da força bruta e pelos revisionistas da história como uma “revolução democrática” que “salvou” o Brasil de um fantasioso “perigo vermelho”, difundido deste jeito para gerar medo na população e mover parte dela contra um governo liderado por um presidente constitucional que jamais cogitou fazer revolução, mas tão somente, com muita demora e cautela, realizar Reformas de Base que há muito tempo o povo brasileiro clamava (e ainda clama).

Soa ameaçadora tal recomendação, pois partiu logo de um presidente da República eleito pelo voto popular e que jurou cumprir a Constituição, que em seu artigo 1º declara ser a República Federativa do Brasil um “Estado Democrático de Direito”. Até a data escolhida, o que não é de hoje, é uma falácia. Sabe-se que o uso do aparato de guerra pelas Forças Armadas para depor por meio violento o então presidente constitucional do país, João Goulart, foi deflagrado na data de 31 de março de 1964, mas só no dia seguinte, a 1º de abril, no popular Dia da Mentira, que o golpe de Estado se realizou efetivamente. Talvez tenham antecipado a data oficial de sua funesta comemoração para fugir da data real, pois esta realmente foi o dia da vitória de uma grande mentira que enganou o povo não apenas quanto aos seus motivos, como também no que se refere aos seus propósitos.

Que “revolução democrática” foi essa que rompeu de modo violento e antidemocrático a ordem constitucional para depor um presidente legítimo? Que deixou o povo sem votar para presidente de 1964 a 1989, ou seja, por longos 25 anos? Que tolheu liberdade individuais e coletivas? Que praticou violações sistemáticas aos direitos humanos e cometer crimes internacionais? Que perseguiu não apenas militantes de conhecidas organizações políticas de esquerda, mas todos os que expressavam posições contrárias ou mesmo apenas ponderavam qualquer coisa sobre o regime? Que salvação da democracia foi essa, na qual, já antes, mas principalmente depois do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, o terror contra opositores e dissidentes, dos mais diversos segmentos e classes sociais, foi elevado a status de política de Estado?

Durante a ditadura, independentemente de suas posições políticas e ideológicas, religiosos, professores, pesquisadores, intelectuais estudantes, parlamentares, ativistas, líderes de movimentos sociais, artistas, escritores, jornalistas, camponeses, indígenas, militantes partidários, sindicalistas, empresários, LGBTs, negros, mulheres, crianças, até mesmo bebês, todos, até mesmo militares (os legalistas) que foram alvo de qualquer tipo de desconfiança dos agentes da repressão,  acabaram brutalmente perseguidos, cassados, desmoralizados, inviabilizados profissional e financeiramente, presos, torturados, mortos, desaparecidos e/ou obrigados a partir para o exílio, viver longe de sua Pátria. Muitos que apoiaram o golpe, na sociedade ou nos altos postos do Estado, também padeceram sob o terrorismo oficial.

Suspenderam liberdades individuais, intervieram nos sindicatos, fecharam entidades estudantis, extinguiram partidos políticos, manietaram o legislativo, bem como cercearam as liberdades de expressão de opiniões, de imprensa e artística, esta através da censura prévia e até de formas mais agressivas, entre outras atrocidades. A corrupção foi praticada desbragadamente, das mais diversas formas, sob o poder do tacão. Não é preciso nem dizer os riscos que corriam os que ousassem expor casos de corrupção nos altos escalões do regime tirânico, fossem eles jornalistas ou órgãos da imprensa, integrantes do sistema de poder ou qualquer cidadão. Mesmo assim, muitos casos conhecidos vieram à tona.

Mas não apenas as instituições, as liberdades civis individuais e coletivas, a moralidade pública e os direitos humanos foram degradados. No saldo, apesar do “Milagre Econômico” do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), quando aquela ordem autoritária começa a se mostrar irreversivelmente moribunda, o quadro social e econômico já era desastroso. Diziam que era preciso fazer crescer o bolo, para depois dividir. O bolo cresceu, mas ficou nas mãos de uma minoria rica de dentro e de fora do país. A dívida externa cresceu exponencialmente, inviabilizando nossa independência e vulnerabilizando nossa economia. Com isso, esgotou-se já no fim dos anos 70 o ciclo de desenvolvimento iniciado em 1930.

Como se sabe, vieram depois as chamadas “duas décadas perdidas”, o que aumentou a  nossa tragédia social e nacional. No campo, para a maioria dos poucos que lá ficaram, só sobrou trabalho degradante e miséria. Os grandes fluxos que partiram dos interiores e da zonas rurais para as periferias das grandes cidades, tivera que viver em situação precária, sem moradia decente, sem saneamento básico, sem acesso a serviços públicos essenciais e infraestrutura urbana, trabalhando na informalidade, com o salário arrochado ou desempregado, debaixo da carestia. Fome, miséria, violência, repressão, morte é o que a ditadura deixou para dezenas de milhões de brasileiros pobres.

Portanto, entendemos que não apenas não há nada a comemorar, como a comemoração dessa “página infeliz da nossa história” por integrantes das estruturas do Estado configura ultraje gravíssimo à consciência democrática e às leis que determinam constituirmos uma justiça de transição no Brasil, de maneira a conferir efetividade ao direito à memória, à verdade e à justiça, questões já consignadas no direito pátrio e no direito internacional. Quem comemora ou incita a comemorar um golpe que já foi considerado como tal pelo próprio Estado brasileiro, assim como o foram as violações de direitos humanos cometidas por agentes estatais ou mesmo da sociedade sob a influência daquela “ordem” anômala, no mínimo deseja repetir ou está querendo arrastar outros setores a rumarem por uma “estrada perigosa”, como bem asseverou o atual presidente da OAB.

Já advertiu em nota pública a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF) que “transcorridos 34 anos do fim da ditadura, diversas investigações e pesquisas sobre o período foram realizadas. A mais importante de todas foi a conduzida pela Comissão Nacional da Verdade – CNV –, que funcionou no período de 2012 a 2014”. A CNV foi instituída pela Lei 12.528/2011 com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Seu relatório representa a versão oficial do Estado brasileiro sobre aqueles acontecimentos. Juridicamente, nenhuma autoridade pública, sem fundamento sólido e transparente, pode atentar contra as conclusões da CNV, dado o seu caráter oficial. A CNV confirmou que o Estado ditatorial brasileiro praticou crimes graves de lesa-humanidade. Pelo direito, não existe a chamada teoria dos “dois demônios”, ou seja, aquela retórica marota dos “dois lados” combatendo com paridade de armas e ambos cometendo excessos que justificam a violência de parte a parte. Se houve “dois lados”, um foi o do Estado violando direitos humanos e liberdades; o outro lado foi o lado de suas vítimas.

Prosseguindo, ainda conforme a nota da PFDC/MPF, e repetindo, também à luz do direito penal internacional os ditadores brasileiros cometeram crimes contra a humanidade. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) fez tal reconhecimento quando julgou o caso Vladimir Herzog, em 2018, o mesmo podendo ser afirmado sobre o entendimento da Procuradoria Geral da República, quando se manifestou na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 320 e outros procedimentos em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF). Importante enfatizar que, se fossem cometidos atualmente, receberiam grave reprimenda judicial, inclusive do Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma em 1998 e ratificado pelo Brasil em 2002.

Ainda considerando os contundentes e certeiros argumentos da PFDC/MPF, “se repetida nos tempos atuais a conduta das forças militares e civis que promoveram o golpe, seria caracterizada como o crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático previsto no artigo 5°, inciso XLIV, da Constituição de 1988. O apoio de um presidente da República ou altas autoridades seria, também, crime de responsabilidade (artigo 85 da Constituição, e Lei n° 1.079, de 1950). Em se confirmando essa interpretação, o ato se reveste de enorme gravidade constitucional, pois representa a defesa do desrespeito ao Estado Democrático de Direito”. Torna ainda mais grave o fato a utilização da estrutura pública para fazer apologia e celebrar crimes constitucionais e internacionais, pois atenta contra princípios básicos da administração pública, podendo o ato ser enquadrado como de improbidade administrativa, conforme o artigo 11 da Lei n° 8.429, de 1992.

Em lugar de se comemorar essa “página infeliz da nossa história”, os fatos gravíssimos e danosos nela escritos de modo doloroso com letras de sangue deviam, sim, serem alvo de apuração, visando à verdade histórica e à justiça para reparar vítimas e familiares. O Brasil não precisa de comemoração a atos de violência. Necessita de respeito à sua soberania, de desenvolvimento, de cultura, arte, ciência, tecnologia, preservação ambiental, educação de qualidade, saúde para todos, segurança cidadã, geração de emprego e renda. Precisa de mais liberdade, mais democracia, não de menos, não de retrocesso, de volta ao passado.

Os militares cientes de sua missão institucional de salvaguardar a soberania e as riquezas da nação, merecem respeito. Já tivemos, e temos, militares legalistas, inclusive de alta patente, que, como já citado nesta carta, foram vítimas de violação de direitos humanos. Não podem, como foram da outra vez, serem arrastados para a intervenção na ordem interna do país. Em 1964, como agora, se sentem mãos de fora juntas com as de de dentro tentando empurrar outros a aventuras que podem até não ter êxito, mas que podem causar danos de monta. Naquela época, através da Embaixada dos EUA no Brasil, conforme documentos e gravações que os próprios estadunidenses revelaram 50 anos depois, fez organismos estatais forâneos atuarem diretamente em conluio com setores locais importantes naquele triste episódio, que virou uma longa noite.

Relembremos com pesar, mas com disposição de luta, essa história!

Para que ninguém mais esqueça, para que nunca mais de novo aconteça!

Democracia Sempre!

Ditadura Nunca Mais!

ASSINAM:

Comitê Memória, Verdade e Justiça de MS - CMVJ/MS
Juristas pela Democracia
Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania de MS - ADJC/MS
Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares RENAP - MS
Frente Jornalistas Pela Democracia MS
Comissão Regional de Justiça e Paz De Mato Grosso do Sul – CRJPMS
Centro de Defesa dos Direitos Humanos- CDDH - Marçal de Souza Tupã-i
Grupo TEZ Trabalhos, Estudos Zumbi
Rede de Educação Cidadã
Frente Brasil Popular de MS
Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil de MS –CTB/MS
Central Única dos Trabalhadores de MS – CUT/MS
Mulheres Pela Democracia MS
União Brasileira de Mulheres de MS – UBM/MS
Movimento de Mulheres Dorcelina Folador
Mulheres da Frente Brasil Popular de MS
Fórum Estadual de Mulheres Negras de MS
União Nacional dos Estudantes – UNE
União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – UBES
Diretório Central Das e Dos Estudantes da UFMS - DCE/UFMS
Centro Acadêmico de Pedagogia Fabiany Silva
União da Juventude Socialista de MS - UJS/MS
Coletivo RUA - Juventude Anticapitalista
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Coletivo Terra Vermelha - CTR
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra de MS– MST/MS
Fundação Maurício Grabois (PCdoB)
Fundação Perseu Abramo (PT)
Fundação Astrojildo Pereira (PPS/Cidadania23)
Fundação João Mangabeira (PSB)
Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (PSOL)
Cordão Valu
Teatro Imaginário Maracangalha
Teatral Grupo de Risco – TGR
Urgente Cia.
Coletivo de Cultura Arnaldo Romero
Politize-se
Coletivo (R) existência
Sinasefe-MS
Grupo de Pesquisas: “Casa da Vovó, Morada do Lobo Mau: estudos sobre modelos autoritários, ditaduras e outras formas de indignidade”
Movimento Acredito de MS
Flor e Espinho Teatro.


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